O Sofrimento do Homem Gay Cisgênero

Por Naamã Rubet

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Apesar de ainda termos um longo caminho a percorrer, não há como negar que no Brasil, nos últimos anos, homens gays cisgêneros se beneficiaram com ganhos na média de aceitação social. Presenciamos transformações marcadas por conquistas legais como o direito ao casamento em cartório, direito à adoção de filhos, criminalização da homofobia e a suspensão de restrições para doação de sangue. As telenovelas exibem em horário nobre o amor entre dois homens. O Big Brother Brasil, um dos programas mais vistos da televisão Brasileira, recentemente televisionou o primeiro beijo gay de todas suas edições. Testemunhamos a existência de homens gays cisgêneros deixando as sombras.

Celebramos a importância, proporção e velocidade dessas transformações, porém em alerta. Estudos sobre índice de depressão, solidão e abuso de substâncias entre homens gays permanecem no mesmo lugar que estiveram por anos.

Pesquisas em países com conquistas legais como a legalização do casamento gay e a adoção de filhos, evidenciam uma grande diferença nas taxas de transtorno de humor, automutilação e suicídio entre homens gays em relação aos héteros. O estudo “Prevenção de suicídio entre homens gays e bissexuais: nova pesquisa e perspectiva” no Canadá, mostrou que lá, homens gays estão de 2 a 10 vezes mais favoráveis em tirar suas vidas em relação a homens héteros. Na Holanda, três vezes mais propensos a sofrer de transtorno de humor. Já na Suécia, a taxa de suicídio entre homens casados com homens é tripla em relação a homens casados com mulheres. Não encontrei pesquisas com essa profundidade aqui no Brasil, mas isso não diminui nosso alerta sobre o sofrimento do homem gay brasileiro.

Conquistas legais e aceitação social são imprescindíveis, mas, por si só, aparentam não ser suficientes para evitar o sofrimento psíquico dessa população. Tais preocupantes estatísticas levam à mesma conclusão: ainda é muito perigoso passar pela vida como um homem que se atrai sexualmente por outros homens. De algum modo, homens gays são preparados para esperar a rejeição. Pertencer a um grupo marginalizado exige muito esforço. Desde a infância são anos e anos de pequenos estressores e o trauma é a natureza prolongada dele — pequenos eventos levam ao questionamento: Será que é por causa da minha sexualidade? Fenômeno que foi chamado pelos pesquisadores da área de “Estresse de Minorias”.

Até recentemente, a maioria dos estudos apontava como causa do sofrimento psíquico dessa população agentes estressores externos à comunidade, a homofobia encarnada na rejeição familiar, rejeição da comunidade religiosa, entre outras. Porém, um estudo realizado por John Pachankis, professor e pesquisador na universidade de Yale, nos EUA, mostrou que homens gays têm sofrido psiquicamente com estresse vindo dos seus pares, fenômeno nomeado como “Estresse Intra-minoritário”.

A primeira rodada de danos acontece antes de sair do armário, a segunda, e talvez a mais severa, vem depois. Após deixar a solidão do armário, o sentimento de isolamento pode permanecer. A fantasia de que depois da auto aceitação da sua sexualidade virá um recomeço mais confortável e segura no “vale dos homossexuais”, ou seja, em uma comunidade de pessoas que vivenciaram a mesma rejeição que você, logo cai por terra. A luta para se encaixar fica cada vez mais intensa.

Fora do armário, a sensação de não pertencimento pode ser ainda maior. Uma vida inteira de inadequação. Em um primeiro momento ao mundo, que é heteronormativo, em seguida, as exigências do “mundo gay”. Um é produtor de sofrimento. Um estudo publicado em 2015, na Califórnia, apontou que lá a taxa de depressão e ansiedade são maiores em homens que tinham saído recentemente do armário em relação aos que ainda estavam “presos” nele. Um novo trauma. De repente não é mais sua homossexualidade que faz você ser rejeitado, mas por ser quem é. Por ser afeminado, sua cor, idade, peso e renda. Nesse contexto, as crianças que foram vítimas de bullying, ao crescer, se tornaram os agressores. Segundo Pachankis, a discriminação dentro do grupo pode causar mais danos do que a rejeição externa.

A pesquisa sobre o “Estress Intra- minoritario” na comunidade gay revelou quatro principais eixos e, em sua maioria, marcados pelo excesso: Excessivo foco no sexo em detrimento de relacionamentos ou amizades; Excessiva preocupação com o status: masculinidade, atratividade e riqueza; Excessiva competitividade com os pares; Exclusão da diversidade na comunidade gay, que inclui diversidade étnico- racial, diversidade de idade e a discriminação dos que vivem com HIV.

Entre as razões da comunidade poder ser um agente estressor, encontra-se como essa rejeição acontece. Com o advento da internet, espaços de encontros gays, como bares e baladas, estão sendo substituídos pelas redes sociais e aplicativos. Para muitos, essa se tornou a principal forma de interação com outros homens gays. Há pesquisas que revelam que até 90% dos homens gays nos aplicativos buscam parceiros com as seguintes características: jovens, altos, brancos e másculos. No entanto, a maioria nem sequer atende uma dessas exigências.

A seleção estética para um sexo casual inicia pelo “manda foto”, mas, quase sempre, elimina nossa diversidade: Não aos gordos, afeminados, baixos. A lista é enorme. Isso sem um mínimo de interação. Esse tipo de conexão apenas fornece uma forma eficiente de se sentir inadequado por ser quem é. Fica ainda pior com a intersecção do racismo, já que quase sempre homens gays pretos nos aplicativos recebem duas formas de feedback: rejeitados ou fetichizados.

De algum modo, o que aconteceu na infância se reproduz na vida adulta. No armário, a autoestima do garoto estará vinculada às exigências do mundo externo: sendo um excelente aluno, excelente no esporte, entre outros. Na vida adulta, esse valor se concentra nas normas da comunidade gay, que é ainda mais exigente: ter uma “boa aparencia”, ser másculo e com uma performance sexual impecável. Por um momento pode até ser alcançado, mas, após uma vida inteira vivida pelo olhar do outro, chega a idade, já exausto, vem a pergunta: Isso é tudo que existe? Aí pode vir a depressão.

Não é por causalidade que estamos preocupados com o “Chamsex”, ou “Sexo químico”, entre homens gays e bissexuais. Apesar de não haver pesquisas com essa correlação, no consultório é recorrente escutar de pacientes adeptos à prática, que entre outras coisas, ao fazê-la, se sentem mais sensuais, mais atraentes e, até, menos preocupados com julgamentos. Diferente do “Sexo careta”. A droga aumenta o prazer, mas também diminui a sensibilidade ao desprazer, ao mal-estar. Ela oferece uma forma de atingir a independência do externo e da realidade. Certamente, em alguma medida, isso é um sintoma que nos alerta para o sofrimento.

Não há dúvidas que para os outros integrantes da comunidade L(G)BTQIA + há um sofrimento ainda mais devastador, mas atravessados por interseções específicas, sendo assim, demandam análises específicas, inclusive os homens gays transgêneros. Não é possível afirmar que em algum momento a lacuna da “saúde mental” entre homens gays e héteros deixará de existir, mas uma coisa é certa, os desafios enfrentados possibilitaram que homens gays desenvolvessem resistência e resiliência, mas por alto custo. Consideramos esses fatos na medida que lutamos por leis e ambientes melhores e, sobretudo, deixamos de reproduzir a violência que em um primeiro momento sofremos e aprendemos a sermos melhores com os nossos.

Um fantasma do homem gay cisgênero

Desde os primeiros casos, o HIV/aids veio a público como “infecção de homossexuais”: “Peste gay” e “Câncer cor de rosa”. O avanço da ciência e a alteração do perfil epidemiológico da síndrome afrouxou os laços entre HIV/aids e a homossexualidade, mas, em certa medida, ainda não rompeu. Os primeiros discursos produziram marcas simbólicas nas identidades sexuais não hegemônicas, com reverberações psíquicas e no laço social. Enquanto que, no imaginário social, há pressuposições que ser uma pessoa trans ou travesti significa viver com HIV, a infecção seria o destino de todo homem gay. Nas reflexões do post, me limitarei ao impacto em homens gays.

A constituição subjetiva e a descoberta da sexualidade de homens atraídos sexualmente por outros homens carrega a marca fantasmagórica do HIV/aids. Nessa direção, o homoerotismo se constitui entre tesão e tensão, gozo e risco. Angústia esta quase não presente no heteroerotismo, o que pode ser constatado nos diálogos de heterossexuais em que a camisinha muitas vezes é tomada para se evitar restritamente o “risco” de uma gravidez não desejada. Quando não usada, a grande preocupação se restringe à pílula do dia seguinte. Essa lógica evidencia a fantasia de que a heterossexualidade seria sinônimo de imunidade para o HIV. Tal forma de gerir o uso da camisinha indica a ausência do fantasma entre heterossexuais em sua maioria.

A expressiva prevalência de sintomas fóbicos em homens gays em relação ao HIV e outras IST’s sugere as reverberações do sofrimento causado pelo fantasma. Atuando na clínica, recebo com frequência homens gays em profundo sofrimento psíquico por uma suposta possibilidade da infecção. Aqueles com sintomas mais severos chegam a abdicar da vida sexual por anos. Não se trata de questões conscientes ou de acesso à informação: em sua maioria, são bem informados, conhecem as estratégias de prevenção combinada, fazem uso de PrEP, acompanhamento com infectologistas, testam-se regularmente, em alguns momentos até obsessivamente, mas a angústia persiste. Aqui nas redes, diariamente, acolhemos dezenas de mensagens com o mesmo teor. É importante marcar que, numa escuta clínica, cada caso é tomado na sua singularidade, conforme a ética da psicanálise.

Mesmo sem uma mínima possibilidade de risco para a infecção, para muitos homens gays é da ordem do insuportável um relacionamento com quem vive com o vírus.“Falei do diagnóstico para o boy e ele sumiu”, “após contar da sorologia, ele deu um ghosting”. Esses relatos são comuns. De alguma forma, não consciente, é como se acontece a materialização do fantasma diante de si. Na clínica, por outro lado, é comum identificar em muitos discursos uma lógica em que o diagnóstico desvaloriza o Eu diante do outro. Quem some tem medo, quem é deixado lida com o sofrimento da rejeição somado, agora, ao fantasma da solidão. Angústia.

O sofrimento que antecede a testagem para o HIV também sinaliza o fantasma. Ocorre a invasão de pensamentos ruminantes sobre possíveis exposições. Me questiono se a heterossexualidade, majoritariamente, é tomada pela mesma dimensão de angústia nessas situações como frequentemente ouvimos de homens gays. Não é por acaso discursos como o da Ana Paula Valadão, que viralizou na internet em 2020, associando a infecção pelo HIV à consequência do pecado do sexo entre dois homens. Isso quase quarenta anos após o início da epidemia, com grandes avanços científicos e alterações no perfil epidemiológico. No imaginário social, de algum modo ainda reverbera a equação homossexulidade = HIV/aids. Além da condensação de sentidos como “pecado”, “promiscuidade”, “sujeira” e “morte” no significante soropositivo.

Receber o diagnóstico HIV positivo seria o encontro com o fantasma que se tentou evitar desde as primeiras experiências sexuais. Já ouvi de pacientes que, ao contarem da sua sexualidade para os pais, apesar da suposta aceitação, ouviram frases como “tudo bem ser gay, mas cuidado com a aids”. “Só não vai ficar ‘aidédico’, hein”. Os heterossexuais crescem ouvindo esses discursos? A preocupação com a vida sexual, quase sempre, se limita a usar camisinha para não engravidar. Quais as consequências destes discursos na subjetivação e sexualidade de homens gays?

Ao invés de fugir, como que em um mecanismo de negação, é preciso lidar com o fantasma.

Não há grupo de risco para o HIV. A infecção não é para “promíscuos”. Também é preciso entender que a questão da epidemia do HIV/ aids não se restringe a quem vive com o vírus. Romper com essa lógica significa, como mostra o psicanalista Jurandir F. Costa, citando o antropólogo Richard Parker, no livro A inocência e o vício: um estudo sobre o homoerotismo, “o HIV/aids não é uma ‘doença de homossexuais’, como quis o preconceito, mas continua sendo uma questão importante para os homens gays”. Eu me autorizo a fazer um adendo:
Fantasmas provocam medo, mas não são reais. Não é preciso negar/ fugir. Monstros psíquicos perdem a dimensão e força quando encarados.

Naamã Rubet
Psicólogo/ Psicanalista

HIV x COVID 19: quando o desserviço de Bolsonaro foi uma denúncia

A pandemia esquecida, talvez por sua dimensão traumática na cultura, semanas atrás ganhou um instante de atenção após uma live do presidente. Bolsonaro disse ao povo brasileiro que as pessoas que tomaram a vacina contra o Coronavírus estavam desenvolvendo a doença causada pelo Vírus da Imunodeficiência Humana, a aids. O vídeo viralizou. A live foi derrubada pelo instagram. Bolsonaro foi desmentido pelas autoridades epidemiológicas do mundo. O assunto mais uma vez foi esquecido. 

A doença causada pelo HIV foi colocada como ameaça para os que se protegem contra a Covid 19. Um punhal cravado no peito, sangramento em silêncio. Metáfora possível para como parte das pessoas vivendo HIV ou doentes de aids receberam a notícia. Silêncio.

A pandemia atual escancarou nossa transitoriedade e finitude. A morte bateu à porta. Nossas certezas se abalaram. Nos angustiamos. Adoecemos. Choramos pelos que perdemos. Inalar tornou-se um risco. Ameaça invisível. Cobrimos. Máscara. Para alguns, a infecção podia ser fatal. Isolamento. Pavor. Abruptamente um terror se instaurou. Um vírus desconhecido. A comunidade científica trabalhou freneticamente. Muitas perguntas e poucas respostas. Morte como certeza. 

Estariam os corpos imunodeprimidos vulneráveis? 

Ausência de resposta.

Terror. Angústia. Medo. 

CALE-SE!

Silenciamento.  

Nos primeiros meses as pessoas com diagnóstico positivo para o HIV não sabiam se estavam em maior risco. A segurança dada pelos antirretrovirais estaria fragilizada? Morte iminente? Sem resposta. Isolamento social. Casa cheia. Como se tratar em segredo? Alguns enterram a medicação na tentativa de garantir o sigilo. Faltará medicação? Como ir buscar? Sobreposição de epidemias. Ameaça constante. Incertezas. Profundo estado de angústia, sofrimento psíquico. Ausência de palavra e angústia não simbolizada. Sintomas. Diagnósticos psiquiátrico como “ansiedade” e “depressão” em pessoas vivendo com HIV passaram a chegar com recorrência na minha clínica. 

Apesar dos avanços biomédicos, a produção discursiva e construções simbólicas sobre o vírus colocam a infecção no lugar do terror. O trauma da Covid- 19 se sobrepôs ao trauma não elaborado do HIV. O vírus do qual não se fala, a doença impronunciável. Indigesto, sentença de morte, indício de promiscuidade, degradação do humano, no imaginário, estética cadavérica e assombro pelo fantasma da morte. Significados condensados no significante aids. Daí viria a tentativa de apagamento da palavra? Algo que parece indicar um mecanismo de negação. O que há de insuportável na palavra? Bolsonaro a usa na tentativa de aterrorizar a população.

Apesar do desserviço, a fala do presidente nos lembra que o HIV permanece entre nós e que a aids ainda mata. A infecção acontece em grande escala, mas após o positivo: segredo. Amordaça. Cale-se! Uma infinidade de doenças, mas ele disse aids. A dessemelhança entre HIV e COVID 19 não está só por serem vírus distintos e nos afetarem de modo diferente, mas, sobretudo, por sua construção simbólica e produção discursiva na cultura. Quarenta anos de epidemia de HIV e dois de Coronavírus. Duas pandemias. Dois vírus. Ambos podem ser letal. Mas com impactos psíquicos distintos. Um com tratamento, o outro com vacina.  Distinta “infecção” simbólica. 

Pouca, ou nenhuma, mudança discursiva em décadas. O impacto psíquico da atual pandemia esteve para todos, mas nas pessoas vivendo com HIV sua devastação pode ter sido mais severa. Silenciamento e solidão. Incerteza e angústia. Dois anos áridos e tenebrosos atravessados sem lugar para palavra. A vacina trouxe os primeiros sinais de esperança, mas foi associada à aids como uma ameaça mortífera. O segredo mais íntimo de quase um milhão de pessoas, de algum modo, exposto violentamente nas redes. Um despir violento. Quais as consequências psíquicas para quem vive com o vírus? 

O que aproxima 2 anos de 4 décadas? Como os dois vírus convergem na fala do presidente?  

O Coronavírus tirou nossa alegria, em Paulo Gustavo, mas não podemos esquecer de quem levou nossa poesia, em Cazuza. Viramos jacaré com orgulho. Exibimos que nos vacinamos contra a Covid, mas quase um milhão de pessoas tratam o HIV em oculto. Buscar a medicação é da ordem do insuportável e é um esforço colossal para tomá- la diariamente em segredo. Distante das grandes metrópoles, há quem viaja quilômetros para buscar os antirretrovirais em outras cidades, ou, ainda, quem com muita angústia espera o horário mais vazio para ir à farmácia sem ser visto.  Quanta energia psíquica investida para continuar vivo.

Sintomas. 

Abstinência sexual. Ausência de libido. Certeza da solidão. Conflitos no ambiente de trabalho. Constante tensão. Morte social. Uns se fecham em um relacionamento que está desmoronando. Extremo sofrimento psíquico. Suicídio. Para alguns, os antirretrovirais servem apenas para manter o corpo vivo, na dimensão social e psíquica: morte. 

O Dezembro Vermelho se aproxima. Como em uma autopromoção sobre uma pauta extremamente delicada, nas redes alguns perfis de saúde abordarão o tema, ao virar o ano, como sempre, esquecimento. Bolsonaro usou a aids quando lhe foi apropriado, que, de um modo mais sutil, não façamos o mesmo. Afinal, para uma pessoa vivendo com HIV ou doente de aids é vermelho 365 dias, o ano inteiro.

Conscientizar é importante, mas não o suficiente. Não se trata do cognitivo, do mental. Tenho pacientes dos mais variados níveis intelectuais, desde quem não concluiu o ensino médio a pós doutores, profissionais de saúde de diversas áreas, de médicos a auxiliares de enfermagem, ambos com importantes questões relacionados ao vírus, vivendo ou não com o vírus. Há algo que extrapola a dimensão cognitiva, do saber, do conhecimento, e está no que Lacan postulou como dimensões do Real, Simbólico e Imaginário. Sobretudo na produção discursiva e as construções Simbólicas sobre o vírus. Talvez seja possível pensar que algo tão intrínseco na cultura se tornou estrutural, sendo assim, em certa medida, é estruturante.

Como desmontar isso que se consolidou? Que é estruturante. O estigma como colunas fundantes dessa estrutura. Clinicamente, para um sujeito, vejo na análise uma possibilidade, até que o sujeito possa produzir novos sentidos, diferente dos construídos ao longo da vida. É o que testemunho na minha clínica. Cada um, ao seu modo. Na cultura, a produção de novos discursos, que enfrentem e se oponho aos produzidos até o momento. Mas para isso é preciso romper com limitada perspectiva biomédica de tratamento e prevenção e trazer os significantes HIV e AIDS para o campo do discurso o ano inteiro. Até que essas colunas seja abaladas e desmoronem e novos sentidos sejam construídos.

Por Naamã Rubet

Psicanalista/Psicólogo

Obs: O texto pode receber alterações a qualquer momento.

HIV & A Fragilidade da vida

Por Naamã Rubet

De alguma forma, um diagnóstico, como o positivo para o HIV, entre possibilidades, mostra o quanto somos frágeis e finitos. Em 1916, Freud escreveu sobre a impossibilidade de existirmos sem perecer. Ele recorre a uma lembrança de um lindo dia de verão em que passeava com um amigo, um jovem poeta, vislumbrando uma bela paisagem. Mas, nas palavras de Freud, o jovem estava “pertubado”, pois, “assim como toda beleza do humano”, o belo diante dos seus olhos estava fadado à extinção, com a chegada do inverno. Para o jovem, constatar a “transitoriedade” do que amava e admirava implicava na perda do seu valor.

A palavra “transitoriedade” é definida no dicionário Aurélio como “estado ou particularidade do que é momentâneo, temporal ou transitório; temporalidade”. Um anúncio da nossa finitude no tempo. Semanas atrás, assistindo ao espectáculo “Cuidado quando for falar de mim” , que retrata histórias de pessoas vivendo ou convivendo com HIV, fui fisgado pela abertura. Nela, vozes simultâneas, como em coral desarmônico, repetem frases como “ Na hora, parece que o chão se abriu” e “Um buraco abriu sob meus pés”, aparentemente se referindo ao momento que souberam do diagnóstico. São metáforas que também surgem na clínica, quando pacientes se recordam desse momento.

Uma experiência de angústia e que parece não haver palavras que dê significado, na inexistência, usam-se metáforas. Por elas, é possível escutar o encontro com a efemeridade, “um buraco que se abre” e “o chão se abriu”, de certa forma se fala do encontro com o fim, em sua radicalidade.

No documentário “Cartas Para Além dos Muros”, do diretor André Canto, disponível na Netflix, há uma cena em que o médico infectologista, Artur Timerman, diz que, enquanto médico, a aids tirou sua fantasia de onipotência e poder “resolver tudo” e o trouxe para a realidade. Em suas palavras, “A aids foi aquela que puxou… Não! Baixa tua bola!”.

As tecnologias de prevenção e tratamento avançaram, mas o Vírus da Imunodeficiência ainda desafia a ciência e nos lembra que somos frágeis, finitos e perecíveis. Atualmente, em paralelo, temos a Covid- 19, que também abalou nossa certeza de passado, presente e garantia de futuro. A ciência avança e tenta prolongar nossa experiência no tecido da existência, mas a única garantia que temos é nossa temporalidade. Constatação que levou o poeta a deixar de “fruir da beleza do que existe”. Freud o considerou pessimista, pois “o valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo”, ainda em suas palavras, “uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela”. A beleza da vida pode estar na sua brevidade.

Diagnósticos com prognósticos, caso não tratado, como a infecção pelo HIV, mostra que somos frágeis e perecíveis. Uma constatação, que, segundo Freud, pode levar ao luto ou à melancolia. A última, talvez a mais difícil. Nela, acontece uma invasão de um estado profundo de tristeza e desinvestimento libidinal (amor) em sí e na vida, além do desinteresse pelo mundo externo. Como se algo fosse perdido, mas não se sabe o que é. Se torna da ordem do insuportável constatar que tudo perece e lidamos com a incompletude.

Dados de São Paulo, da Pesquisa Índice de Estigma em Relação às Pessoas Vivendo com HIV 2019 Brasil, de certa forma nos indica a dimensão desse sofrimento psíquico. Na pesquisa, 31,7 % dos entrevistados relataram que, por viver com HIV, no último ano se isolaram de familiares e amigos; 25,5 % disseram que nos últimos 12 meses não participaram de evento social devido sua sorologia e; 29,8 % decidiram não fazer sexo. Não é possível afirmar que os entrevistados estão em um estado de melancolia, para isso é necessário escutar cada sujeito, mas os números indicam uma angústia e empecilho de investimento em si, no outro e na vida. É possível lidar com essa experiência de outra forma e a análise, ou terapia, é uma possibilidade.

Para Freud, o luto parece ser a melhor saída possível. Após a elaboração da perda do ideal de imortalidade e de onipotência e constatar a efemeridade da vida, é possível um reinvestimento nela. Apesar da morte, se torna possível amar a vida e, apesar da dor, é possível ter alegria e fruir de momentos que a vida nos traz. Quando o luto chegar ao seu fim, “reconstruiremos tudo […] talvez em um terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes”, segundo Freud. Pelas palavras de Clarice Lispector, “Vida é o desejo de continuar vivendo e viver é aquela coisa que vai morrer. A vida serve para se morrer dela”.
Se somos frágeis e temporários, vivendo com HIV ou não, a questão que fica é : qual nosso desejo na vida? Que vida desejamos viver?

Afinal, o que é saúde mental?

Por Naamã Rubet

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O mês atual foi escolhido por um grupo de psicólogos de Minas Gerais para abordar a questão da Saúde Mental no Brasil, e a campanha recebeu o nome de Janeiro Branco. Desde o começo da pandemia houve uma preocupação com a Saúde Mental, pois a incerteza, a privação, o isolamento social e o grande número de mortes nos afetam diretamente.

O que muita das vezes era entendido como “frescura”, passou a ser olhado com atenção e receber cuidado. Minha agenda dobrou nesse período. Pesquisas mostram um aumento exponencial na procura de psicoterapia/análise online durante o isolamento, além de yoga, meditação, atividade física e tantas outras tentativas de amenizar o que pareceu ser uma angústia coletiva nos últimos meses, com exceção dos negacionistas.

Mas afinal, o que é saúde mental? Muitas das vezes ela é entendida de maneira equivocada. Esse termo pode nos remeter a uma lógica biomédica obsoleta de compreensão de saúde como ausência de doença, ou um estado de completude. Nessa lógica, do ponto de vista psíquico, estar saudável seria um estado de ausência de angústia. Como se isso fosse possível.

Saúde Mental não é uma condição plena de felicidade, ânimo e satifação com a vida. Ao contrário, é a possibilidade de não adoecer, no sentido de fazer sintomas graves e perecer diante da angústia. É poder enfrentar os desafios e o sofrimento sem adoecimento. O que está em jogo é pensarmos os mecanismos de luto, os tratamentos possíveis e os hábitos que podem nos ajudar a passar por momentos difíceis. Somos seres sociais. Sofremos no laço social e nos curamos no laço social. Precisamos uns dos outros para superar grandes desafios. Mas palavras de Clarice Lispector, “ a vida é um soco no estômago”. A vida não é fácil.

Nunca teremos um platô de felicidade, porém podemos nos cercar de cuidados e pessoas e, a partir daí, enfrentar de uma forma melhor as dificuldades. Se é fato que todo ônus tem um bônus, apostamos que apesar das imensuráveis perdas do período pandêmico, esse momento seja um marco na transformação cultural da nossa relação com o sofrimento psíquico.

Considerações Sobre HIV e “Lugar de Fala”

Por Naamã Rubet

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No Brasil, o movimento de HIV/ aids tem uma longa história de conquistas políticas e resistência. Desde o início resistiu à política de morte. Mas, sem dúvidas, um recente trabalho na internet está sendo o responsável pela nova estética da pandemia aqui. Estética e discurso, desafio. Para os atualizados, a “cara” do HIV já é outra, e não mais o espetáculo que fizeram com nosso príncipe na capa da Veja.

A representatividade tem um grande valor nessa transformação. Com o surgimento das redes sociais, a Geração Z, se expondo na internet, produziu novos atores sociais, os influenciadores. Em paralelo, importantes transformações políticas e sociais trouxeram a discussão sobre o lugar de fala. HIV/aids: Quem fala desse lugar? Ativistas de décadas ocuparam a internet e jovens que acabaram de descobrir o diagnóstico falaram disso aqui. Surgem os influenciadores com pautas sobre HIV/aids. Recente acontecimento com fundamental importância na transformação estética e discursiva da epidemia.

Ainda há muito para avançar, mas, para os informados, a cara do HIV não é a mais como expuseram na Veja. O corpo positivo que agonizou em praça pública agora está em dezenas de perfis com milhares de seguidores na internet, desde dancinhas no TikTok a vídeos em canais do YouTube, além das belas fotos no Instagram e Twitter. Corpos positivos desejados. Que mudança. Exposição com importante valor político para um discurso.

Mas é preciso cautela. O “Eu” fala por si, e não por “Nós”. É assim que “Eu” vivo, e não “Nós”. A experiência da infecção é singular e complexa. O discurso sobre o vírus, as construções simbólicas, atrelados a marcadores sociais de diferença, encontram um sujeito atravessado por questões que diz respeito à morte, finitude, sexualidade, sexo e tantos outros. Nem entrarei no conceito de sujeito para psicanálise (pulsão, desejo e gozo). O resultado desse encontro é um espectro, pode variar desde o ativismo, abordando essa pauta nas redes, ao suicídio.

É importante que a sociedade veja que as pvhiv vivem. Mas quem assume esse lugar precisa ter cuidado para não vender nas redes um ideal de narrativa após o diagnóstico. Pois, não há! Existe a possível, e cada um constrói ao seu modo. Esse discurso esbarra em questões subjetivas. Na clínica, os sujeitos chegam angustiados com o resultado do diagnóstico, mas, em sessões , começam a falar de outras questões que o resultado despertou. Aposto na escuta analítica como possibilidade, ou mesmo terapia, quando a angústia chega. Apontar os avanços biomédicos sem considerar os efeitos do estigma no sujeito é ser simplista. Essa é uma questão densa.

É claro que há tratamento, mas muitos abandonam. A experiência de buscá-lo na farmácia pode ser de quase morte. O barulho dos frascos da medicação causa pavor. O som do alarme, que lembra da hora do remédio, causa angústia. A dúvida de que se viverá um amor novamente impera. Para alguns, a solidão se torna certeza. É o que ouço na clínica. TARV, que paradoxo, o que mantém vivo pode ser um peso. E essa carga, como diminui?

Essa é uma importante denúncia que deve ser feita pelos que assumiram o tal lugar de fala. É preciso discutir HIV/aids na sua complexidade.
Simplificar o que é complexo mata, nas mais possíveis dimensões da morte.