Um fantasma do homem gay cisgênero

Desde os primeiros casos, o HIV/aids veio a público como “infecção de homossexuais”: “Peste gay” e “Câncer cor de rosa”. O avanço da ciência e a alteração do perfil epidemiológico da síndrome afrouxou os laços entre HIV/aids e a homossexualidade, mas, em certa medida, ainda não rompeu. Os primeiros discursos produziram marcas simbólicas nas identidades sexuais não hegemônicas, com reverberações psíquicas e no laço social. Enquanto que, no imaginário social, há pressuposições que ser uma pessoa trans ou travesti significa viver com HIV, a infecção seria o destino de todo homem gay. Nas reflexões do post, me limitarei ao impacto em homens gays.

A constituição subjetiva e a descoberta da sexualidade de homens atraídos sexualmente por outros homens carrega a marca fantasmagórica do HIV/aids. Nessa direção, o homoerotismo se constitui entre tesão e tensão, gozo e risco. Angústia esta quase não presente no heteroerotismo, o que pode ser constatado nos diálogos de heterossexuais em que a camisinha muitas vezes é tomada para se evitar restritamente o “risco” de uma gravidez não desejada. Quando não usada, a grande preocupação se restringe à pílula do dia seguinte. Essa lógica evidencia a fantasia de que a heterossexualidade seria sinônimo de imunidade para o HIV. Tal forma de gerir o uso da camisinha indica a ausência do fantasma entre heterossexuais em sua maioria.

A expressiva prevalência de sintomas fóbicos em homens gays em relação ao HIV e outras IST’s sugere as reverberações do sofrimento causado pelo fantasma. Atuando na clínica, recebo com frequência homens gays em profundo sofrimento psíquico por uma suposta possibilidade da infecção. Aqueles com sintomas mais severos chegam a abdicar da vida sexual por anos. Não se trata de questões conscientes ou de acesso à informação: em sua maioria, são bem informados, conhecem as estratégias de prevenção combinada, fazem uso de PrEP, acompanhamento com infectologistas, testam-se regularmente, em alguns momentos até obsessivamente, mas a angústia persiste. Aqui nas redes, diariamente, acolhemos dezenas de mensagens com o mesmo teor. É importante marcar que, numa escuta clínica, cada caso é tomado na sua singularidade, conforme a ética da psicanálise.

Mesmo sem uma mínima possibilidade de risco para a infecção, para muitos homens gays é da ordem do insuportável um relacionamento com quem vive com o vírus.“Falei do diagnóstico para o boy e ele sumiu”, “após contar da sorologia, ele deu um ghosting”. Esses relatos são comuns. De alguma forma, não consciente, é como se acontece a materialização do fantasma diante de si. Na clínica, por outro lado, é comum identificar em muitos discursos uma lógica em que o diagnóstico desvaloriza o Eu diante do outro. Quem some tem medo, quem é deixado lida com o sofrimento da rejeição somado, agora, ao fantasma da solidão. Angústia.

O sofrimento que antecede a testagem para o HIV também sinaliza o fantasma. Ocorre a invasão de pensamentos ruminantes sobre possíveis exposições. Me questiono se a heterossexualidade, majoritariamente, é tomada pela mesma dimensão de angústia nessas situações como frequentemente ouvimos de homens gays. Não é por acaso discursos como o da Ana Paula Valadão, que viralizou na internet em 2020, associando a infecção pelo HIV à consequência do pecado do sexo entre dois homens. Isso quase quarenta anos após o início da epidemia, com grandes avanços científicos e alterações no perfil epidemiológico. No imaginário social, de algum modo ainda reverbera a equação homossexulidade = HIV/aids. Além da condensação de sentidos como “pecado”, “promiscuidade”, “sujeira” e “morte” no significante soropositivo.

Receber o diagnóstico HIV positivo seria o encontro com o fantasma que se tentou evitar desde as primeiras experiências sexuais. Já ouvi de pacientes que, ao contarem da sua sexualidade para os pais, apesar da suposta aceitação, ouviram frases como “tudo bem ser gay, mas cuidado com a aids”. “Só não vai ficar ‘aidédico’, hein”. Os heterossexuais crescem ouvindo esses discursos? A preocupação com a vida sexual, quase sempre, se limita a usar camisinha para não engravidar. Quais as consequências destes discursos na subjetivação e sexualidade de homens gays?

Ao invés de fugir, como que em um mecanismo de negação, é preciso lidar com o fantasma.

Não há grupo de risco para o HIV. A infecção não é para “promíscuos”. Também é preciso entender que a questão da epidemia do HIV/ aids não se restringe a quem vive com o vírus. Romper com essa lógica significa, como mostra o psicanalista Jurandir F. Costa, citando o antropólogo Richard Parker, no livro A inocência e o vício: um estudo sobre o homoerotismo, “o HIV/aids não é uma ‘doença de homossexuais’, como quis o preconceito, mas continua sendo uma questão importante para os homens gays”. Eu me autorizo a fazer um adendo:
Fantasmas provocam medo, mas não são reais. Não é preciso negar/ fugir. Monstros psíquicos perdem a dimensão e força quando encarados.

Naamã Rubet
Psicólogo/ Psicanalista

Uma resposta para “Um fantasma do homem gay cisgênero”

  1. Imagino o q homens gay,trans,negros passa em relação aos preconceitos.Eu mulher hetero ,branca, PVHIV + indetectável,já ouvi coisas que me machucaram ,mais do que o Vírus.Todas as pessoas que contei afastaram de mim.As que ficaram tenho certeza ,que são pessoas que me ama e me respeita.As vezes vivemos no anonimato ,pra evitar ouvir coisas q nos machuca.Tive um relacionamento , imaginando que eu poderia ser feliz,poderia refazer minha vida.Mas o medo da rejeição, vergonha fez com que eu escondesse que PVHI.Estavamos felizes,pelo menos eu achava , infelizmente fiquei grávida.Por orientação do meu medico eu contei do HIV,fui escomungada ,rejeitada, acusada, inresposavel…segui com minha gravidez sozinha .Fiz Pré Natal certinho ,mas o meu psicológico estava muito ruim.Sofri pré eclipse e perde meu bebê.Faz 5 anos,eu pensei que não conseguiria me levantar,com ajuda de Deus,do meu infectologista ,do ginecologista e psicólogo eu consegui levantar.Desde então não me relaciono ,promete que não vou me envolver com ninguém sem contar q PVHIV.Quando conto o cara afasta,fala horrores pra mim.Falar a verdade,sinto nojo de homens,machistas que nunca fez um exame de DSTs e vem me atacar ,como se eu fosse suja.Sigo minha vida ,fazendo o acompanhamento com infecto e feliz por ter acesso ao tratamento, remédios , por ter profissionais que me dão apoio e atenção.
    Quero te agradecer por ajudar muito com seus textos, vídeos.Feliz o dia que conheci sua página no Instagram.

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