HIV x COVID 19: quando o desserviço de Bolsonaro foi uma denúncia

A pandemia esquecida, talvez por sua dimensão traumática na cultura, semanas atrás ganhou um instante de atenção após uma live do presidente. Bolsonaro disse ao povo brasileiro que as pessoas que tomaram a vacina contra o Coronavírus estavam desenvolvendo a doença causada pelo Vírus da Imunodeficiência Humana, a aids. O vídeo viralizou. A live foi derrubada pelo instagram. Bolsonaro foi desmentido pelas autoridades epidemiológicas do mundo. O assunto mais uma vez foi esquecido. 

A doença causada pelo HIV foi colocada como ameaça para os que se protegem contra a Covid 19. Um punhal cravado no peito, sangramento em silêncio. Metáfora possível para como parte das pessoas vivendo HIV ou doentes de aids receberam a notícia. Silêncio.

A pandemia atual escancarou nossa transitoriedade e finitude. A morte bateu à porta. Nossas certezas se abalaram. Nos angustiamos. Adoecemos. Choramos pelos que perdemos. Inalar tornou-se um risco. Ameaça invisível. Cobrimos. Máscara. Para alguns, a infecção podia ser fatal. Isolamento. Pavor. Abruptamente um terror se instaurou. Um vírus desconhecido. A comunidade científica trabalhou freneticamente. Muitas perguntas e poucas respostas. Morte como certeza. 

Estariam os corpos imunodeprimidos vulneráveis? 

Ausência de resposta.

Terror. Angústia. Medo. 

CALE-SE!

Silenciamento.  

Nos primeiros meses as pessoas com diagnóstico positivo para o HIV não sabiam se estavam em maior risco. A segurança dada pelos antirretrovirais estaria fragilizada? Morte iminente? Sem resposta. Isolamento social. Casa cheia. Como se tratar em segredo? Alguns enterram a medicação na tentativa de garantir o sigilo. Faltará medicação? Como ir buscar? Sobreposição de epidemias. Ameaça constante. Incertezas. Profundo estado de angústia, sofrimento psíquico. Ausência de palavra e angústia não simbolizada. Sintomas. Diagnósticos psiquiátrico como “ansiedade” e “depressão” em pessoas vivendo com HIV passaram a chegar com recorrência na minha clínica. 

Apesar dos avanços biomédicos, a produção discursiva e construções simbólicas sobre o vírus colocam a infecção no lugar do terror. O trauma da Covid- 19 se sobrepôs ao trauma não elaborado do HIV. O vírus do qual não se fala, a doença impronunciável. Indigesto, sentença de morte, indício de promiscuidade, degradação do humano, no imaginário, estética cadavérica e assombro pelo fantasma da morte. Significados condensados no significante aids. Daí viria a tentativa de apagamento da palavra? Algo que parece indicar um mecanismo de negação. O que há de insuportável na palavra? Bolsonaro a usa na tentativa de aterrorizar a população.

Apesar do desserviço, a fala do presidente nos lembra que o HIV permanece entre nós e que a aids ainda mata. A infecção acontece em grande escala, mas após o positivo: segredo. Amordaça. Cale-se! Uma infinidade de doenças, mas ele disse aids. A dessemelhança entre HIV e COVID 19 não está só por serem vírus distintos e nos afetarem de modo diferente, mas, sobretudo, por sua construção simbólica e produção discursiva na cultura. Quarenta anos de epidemia de HIV e dois de Coronavírus. Duas pandemias. Dois vírus. Ambos podem ser letal. Mas com impactos psíquicos distintos. Um com tratamento, o outro com vacina.  Distinta “infecção” simbólica. 

Pouca, ou nenhuma, mudança discursiva em décadas. O impacto psíquico da atual pandemia esteve para todos, mas nas pessoas vivendo com HIV sua devastação pode ter sido mais severa. Silenciamento e solidão. Incerteza e angústia. Dois anos áridos e tenebrosos atravessados sem lugar para palavra. A vacina trouxe os primeiros sinais de esperança, mas foi associada à aids como uma ameaça mortífera. O segredo mais íntimo de quase um milhão de pessoas, de algum modo, exposto violentamente nas redes. Um despir violento. Quais as consequências psíquicas para quem vive com o vírus? 

O que aproxima 2 anos de 4 décadas? Como os dois vírus convergem na fala do presidente?  

O Coronavírus tirou nossa alegria, em Paulo Gustavo, mas não podemos esquecer de quem levou nossa poesia, em Cazuza. Viramos jacaré com orgulho. Exibimos que nos vacinamos contra a Covid, mas quase um milhão de pessoas tratam o HIV em oculto. Buscar a medicação é da ordem do insuportável e é um esforço colossal para tomá- la diariamente em segredo. Distante das grandes metrópoles, há quem viaja quilômetros para buscar os antirretrovirais em outras cidades, ou, ainda, quem com muita angústia espera o horário mais vazio para ir à farmácia sem ser visto.  Quanta energia psíquica investida para continuar vivo.

Sintomas. 

Abstinência sexual. Ausência de libido. Certeza da solidão. Conflitos no ambiente de trabalho. Constante tensão. Morte social. Uns se fecham em um relacionamento que está desmoronando. Extremo sofrimento psíquico. Suicídio. Para alguns, os antirretrovirais servem apenas para manter o corpo vivo, na dimensão social e psíquica: morte. 

O Dezembro Vermelho se aproxima. Como em uma autopromoção sobre uma pauta extremamente delicada, nas redes alguns perfis de saúde abordarão o tema, ao virar o ano, como sempre, esquecimento. Bolsonaro usou a aids quando lhe foi apropriado, que, de um modo mais sutil, não façamos o mesmo. Afinal, para uma pessoa vivendo com HIV ou doente de aids é vermelho 365 dias, o ano inteiro.

Conscientizar é importante, mas não o suficiente. Não se trata do cognitivo, do mental. Tenho pacientes dos mais variados níveis intelectuais, desde quem não concluiu o ensino médio a pós doutores, profissionais de saúde de diversas áreas, de médicos a auxiliares de enfermagem, ambos com importantes questões relacionados ao vírus, vivendo ou não com o vírus. Há algo que extrapola a dimensão cognitiva, do saber, do conhecimento, e está no que Lacan postulou como dimensões do Real, Simbólico e Imaginário. Sobretudo na produção discursiva e as construções Simbólicas sobre o vírus. Talvez seja possível pensar que algo tão intrínseco na cultura se tornou estrutural, sendo assim, em certa medida, é estruturante.

Como desmontar isso que se consolidou? Que é estruturante. O estigma como colunas fundantes dessa estrutura. Clinicamente, para um sujeito, vejo na análise uma possibilidade, até que o sujeito possa produzir novos sentidos, diferente dos construídos ao longo da vida. É o que testemunho na minha clínica. Cada um, ao seu modo. Na cultura, a produção de novos discursos, que enfrentem e se oponho aos produzidos até o momento. Mas para isso é preciso romper com limitada perspectiva biomédica de tratamento e prevenção e trazer os significantes HIV e AIDS para o campo do discurso o ano inteiro. Até que essas colunas seja abaladas e desmoronem e novos sentidos sejam construídos.

Por Naamã Rubet

Psicanalista/Psicólogo

Obs: O texto pode receber alterações a qualquer momento.

Uma resposta para “HIV x COVID 19: quando o desserviço de Bolsonaro foi uma denúncia”

  1. O que sinto,solidão,abando,medo, depressão, isolamento,suja …todas as pessoas a quem eu contei afastaram de mim, não tenho contato nem por telefone.Hj as pessoas com quem convivo,não sabem q vivo com HIV a 8 anos.As vezes tenho vontade de contar,mas já ouvi tantas palavras q me machucaram mais q o próprio vírus.Sigo com meu tratamento no anonimato.
    Parabéns pelo.Magnifico.❤️?

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