HIV & A Fragilidade da vida

Por Naamã Rubet

De alguma forma, um diagnóstico, como o positivo para o HIV, entre possibilidades, mostra o quanto somos frágeis e finitos. Em 1916, Freud escreveu sobre a impossibilidade de existirmos sem perecer. Ele recorre a uma lembrança de um lindo dia de verão em que passeava com um amigo, um jovem poeta, vislumbrando uma bela paisagem. Mas, nas palavras de Freud, o jovem estava “pertubado”, pois, “assim como toda beleza do humano”, o belo diante dos seus olhos estava fadado à extinção, com a chegada do inverno. Para o jovem, constatar a “transitoriedade” do que amava e admirava implicava na perda do seu valor.

A palavra “transitoriedade” é definida no dicionário Aurélio como “estado ou particularidade do que é momentâneo, temporal ou transitório; temporalidade”. Um anúncio da nossa finitude no tempo. Semanas atrás, assistindo ao espectáculo “Cuidado quando for falar de mim” , que retrata histórias de pessoas vivendo ou convivendo com HIV, fui fisgado pela abertura. Nela, vozes simultâneas, como em coral desarmônico, repetem frases como “ Na hora, parece que o chão se abriu” e “Um buraco abriu sob meus pés”, aparentemente se referindo ao momento que souberam do diagnóstico. São metáforas que também surgem na clínica, quando pacientes se recordam desse momento.

Uma experiência de angústia e que parece não haver palavras que dê significado, na inexistência, usam-se metáforas. Por elas, é possível escutar o encontro com a efemeridade, “um buraco que se abre” e “o chão se abriu”, de certa forma se fala do encontro com o fim, em sua radicalidade.

No documentário “Cartas Para Além dos Muros”, do diretor André Canto, disponível na Netflix, há uma cena em que o médico infectologista, Artur Timerman, diz que, enquanto médico, a aids tirou sua fantasia de onipotência e poder “resolver tudo” e o trouxe para a realidade. Em suas palavras, “A aids foi aquela que puxou… Não! Baixa tua bola!”.

As tecnologias de prevenção e tratamento avançaram, mas o Vírus da Imunodeficiência ainda desafia a ciência e nos lembra que somos frágeis, finitos e perecíveis. Atualmente, em paralelo, temos a Covid- 19, que também abalou nossa certeza de passado, presente e garantia de futuro. A ciência avança e tenta prolongar nossa experiência no tecido da existência, mas a única garantia que temos é nossa temporalidade. Constatação que levou o poeta a deixar de “fruir da beleza do que existe”. Freud o considerou pessimista, pois “o valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo”, ainda em suas palavras, “uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela”. A beleza da vida pode estar na sua brevidade.

Diagnósticos com prognósticos, caso não tratado, como a infecção pelo HIV, mostra que somos frágeis e perecíveis. Uma constatação, que, segundo Freud, pode levar ao luto ou à melancolia. A última, talvez a mais difícil. Nela, acontece uma invasão de um estado profundo de tristeza e desinvestimento libidinal (amor) em sí e na vida, além do desinteresse pelo mundo externo. Como se algo fosse perdido, mas não se sabe o que é. Se torna da ordem do insuportável constatar que tudo perece e lidamos com a incompletude.

Dados de São Paulo, da Pesquisa Índice de Estigma em Relação às Pessoas Vivendo com HIV 2019 Brasil, de certa forma nos indica a dimensão desse sofrimento psíquico. Na pesquisa, 31,7 % dos entrevistados relataram que, por viver com HIV, no último ano se isolaram de familiares e amigos; 25,5 % disseram que nos últimos 12 meses não participaram de evento social devido sua sorologia e; 29,8 % decidiram não fazer sexo. Não é possível afirmar que os entrevistados estão em um estado de melancolia, para isso é necessário escutar cada sujeito, mas os números indicam uma angústia e empecilho de investimento em si, no outro e na vida. É possível lidar com essa experiência de outra forma e a análise, ou terapia, é uma possibilidade.

Para Freud, o luto parece ser a melhor saída possível. Após a elaboração da perda do ideal de imortalidade e de onipotência e constatar a efemeridade da vida, é possível um reinvestimento nela. Apesar da morte, se torna possível amar a vida e, apesar da dor, é possível ter alegria e fruir de momentos que a vida nos traz. Quando o luto chegar ao seu fim, “reconstruiremos tudo […] talvez em um terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes”, segundo Freud. Pelas palavras de Clarice Lispector, “Vida é o desejo de continuar vivendo e viver é aquela coisa que vai morrer. A vida serve para se morrer dela”.
Se somos frágeis e temporários, vivendo com HIV ou não, a questão que fica é : qual nosso desejo na vida? Que vida desejamos viver?

Uma resposta para “HIV & A Fragilidade da vida”

  1. adorei o seu texto. me senti exatamente assim em algum momento. eu tive mta sorte de já estar num processo de terapia há algum tempo, quando recebi meu diagnóstico. tive mto apoio da minha terapeuta, e com certeza isso facilitou muito pra que algumas questões de autoestima, apego e solidão, não se misturassem às do HIV. Gostei do texto. um beijo, gato.

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